sexta-feira, 14 de maio de 2010

Rifa-se um coração (quase novo)

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Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração que na realidade
está um pouco usado, meio calejado, muito machucado
e que teima em alimentar sonhos, e cultivar ilusões.
Um pouco inconseqüenteque nunca desiste de acreditar nas pessoas...
Um idealista...Um verdadeiro sonhador...

Rifa-se um coração que insisteem cometer sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe.
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões...
Sai do sério e, às vezes revê suas posições arrependido de palavras e gestos.

Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo...

Rifa-se um coração tão inocente
que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas:
" O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal
quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer".

Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro
que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconseqüente.

Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que,
ainda não foi adotado, provavelmente,
por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais,
por não querer perder o estilo.

Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos que,
mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar, mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.

Um velho coração que convence seu usuárioa publicar seus segredos e,
a ter a petulânciade se aventurar como poeta.

Clarice Lispector

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